terça-feira, abril 24, 2007

Eram umas vezes...


Só em dias se sol se consegue lembrar o passado. Nos dias em que há luz, ficamos demasiado cegos para conseguir ver para trás. Hoje não há brilho lá fora, por isso ela consegue olhar para tudo o que deixou, tudo o que não quis, tudo o que não pôde. Ou o seu contrário. As boas lembranças. Quem nunca gatinhou e começou logo a andar fez um statement para a vida: nisto mando eu, deixem-me cair, deixem-me tropeçar, deixem-me bater com a cabeça as vezes que preciso for, que isso é comigo, nisto mando eu – em mim mando eu. Pior, pior, é a bá pensar que engana a menina com a colher de sopa escondida atrás da pêra (ela adorava peras tanto como odiava maçãs). Só resultou da primeira vez. Depois, a rebelde com causa trocou-lhe as voltas e gritou "liberdade contra essas coisas viscosas". Sem mais recursos, o melhor a fazer foi pôr a sopinha-passada-quase-leite no prato do gatinho que ela gostava, à hora do Calimero - vitória, vitória! No colégio a tragédia não era grega, mas realmente ela ficava horas sem fim à mesa porque, além do mastigar lhe dar mais trabalho do que atar os enormes laços dos sapatos, não gostava de comer quase nada. Então era ela e o amigo que fazia anos um dia antes do seu, ali sentados, duas, três horas. Ah! Aqui, aqui quem ganhava éramos nós! Ninguém tinha paciência para ver bananas ficarem negras, dia após dia, após dia (não havia fim de almoço sem bananas!). No entanto, o pior vinha depois: como passa-tempo, acordar os dos bibes abaixo à hora da sesta (as pestes não dormem a sesta), tentar fazer a cambalhota numa árvore (e nunca mais a fazer na vida), esconder lápis de cores, cadernos e canetas, e, o supra-sumo, que ela deixava por sua conta: abrir os olhos daquelas criancinhas de dois anos e picos, três e qualquer coisa, trazê-las à realidade e acabar de vez com as mentiras que lhes impingiam – o Pai Natal não existe. Chora, chora à vontade. O Pai Natal não existe mesmo. E no dia a seguir a mãe dela chamada à recepção porque tinha em casa uma terrorista que destruía sonhos de pobres indefesos. Ó mãe, eles ainda não têm sonhos! Se nem eu, com quatro anos e meio, tenho, quanto mais eles… Primeiro dia do resto da vida dela: escola primária. Mochila amarela da Hello Kitty, religiosamente trazida de Espanha, carregada com uma vontade imensa de aprender. O que ela mais queria era despedir-se da mãe, entrar logo naquela sala, sentar-se, e começar a ler e a escrever. Ná! À sua volta estava um bando de crianças que vertiam ranho e baba, se agarravam às pernas dos papás e mamãs, berravam, faziam cenas a roçar o ridículo, enfim, comportavam-se pior do que os soldados que vão a contra-gosto para o Iraque – e, caramba, aquilo nem era o lançamento de uma nave espacial, eles iam aprender, há coisa melhor? Meia hora depois do previsto, lá entraram todos: cabisbaixos, de ar fúnebre, eram as malas que os arrastavam até à sala. Escolheram-se parceiros de carteira, definiram-se lugares, e no meio de vinte e tal alminhas ainda se ouviam uns suspiros, uns lenços a tapar o medo do quadro preto e as saudades da cama quentinha. Algum de vocês já sabe ler e escrever? Ela e o amigo que fazia anos um dia antes do seu, levantaram prontamente o braço…

3 comentários:

criptog disse...

Boas memórias ... precisando de luz, quando não a vemos cá fora podemos reconfortar-nos com o brilho de outros momentos.

:)

Alguém aqui sabe brilhar?

Joana disse...

... nasci atrasada duas semanas..
... esticava o dedo indicador e exclamava "eu sei!"...
... banana com bolacha maria e sumo laranja, tudo esmigalhado ainda é a minha sobremesa preferida...
... primeiro dia de escola nao me lembro, mas sei que já sabia escrever o meu nome, com as letras todas ao contrário não fosse eu uma genuína canhota!

muito bonito!

Ronhonho disse...

Lembro-me, mas mais remotamente que tu, do primeiro dia de aulas e da tua mochila da Hello Kitty! Mas eu nao tinha ranho e baba!!!!! Realmente a professora de unhas encaracoladas metia algum respeito! Eu, tu ou as nossas mães, escolheram-nos como parceiras de carteira! Foste a minha primeira colega de carteira, e disso lembro-me bem!!!