quinta-feira, agosto 24, 2006

A dor aproxima-nos do génio...


“ (…) E pensei não poderiam os homens morrer como morrem os dias? assim, como pássaros a cantar sem sobressaltos e a claridade líquida vítrea em tudo e o suave fresco, a brisa leve a tremer as folhas pequenas das árvores, o mundo inerte ou a mover-se calmo e o silêncio a crescer natural natural, o silêncio esperado, finalmente justo, finalmente digno.
Pai. A tarde dissolve-se sobre a terra, sobre a nossa casa. O céu desfia um sopro quieto nos rostos. Acende-se a lua. Translúcida, adormece um sono cálido nos olhares. Anoitece devagar. Dizia nunca esquecerei, e lembro-me. Anoitecia devagar e, a esta hora, nesta altura do ano, desenrolavas a mangueira com todos os preceitos e, seguindo certas regras, regavas as árvores e as flores do quintal; e tudo isso me ensinavas, tudo isso me explicavas. Anda cá ver, rapaz. E mostravas-me. Pai. Deixaste-te ficar em tudo. Sobrepostos na mágoa indiferente deste mundo que finge continuar, os teus movimentos, e eclipse dos teus gestos. E tudo isto é agora pouco para te conter. Agora, és o rio e as margens e a nascente; és o dia, e a tarde dentro do dia, e o sol dentro da tarde; és o mundo todo por seres a sua pele. Pai. Nunca envelheceste, e que queria ver-te velho, velhinho aqui no nosso quintal, a regar as árvores, a regar as flores. Sinto tanta falta das tuas palavras. Orienta-te, rapaz. Sim. Eu oriento-me, pai. E fico. E estou. O entardecer, em vagas de luz, espraia-se na terra que te acolheu e conserva. Chora chove brilho alvura sobre mim. E oiço o eco da tua voz, da tua voz que nunca mais poderei ouvir. A tua voz calada para sempre.
E, como se adormecesses, vejo-te fechar as pálpebras sobre os olhos que nunca mais abrirás. Os teus olhos fechados para sempre. E, de uma vez, deixas de respirar. Para sempre. Para nunca mais. Pai. Tudo o que te sobreviveu me agride. Pai. Nunca esquecerei.”
José Luís Peixoto, in MORRESTE-ME
NOTAS: a) Este excerto é, para mim, parte de um dos mais bonitos textos de José Luís Peixoto. Foi escrito na sequência da morte do pai, e é um grito de raiva, desespero e impotência face à morte e à sua inevitabilidade. Mas não deixa de ser, também, um apelo às saudades com que ficamos daquilo que vivemos e não chegámos a viver. São apenas 40 páginas de um longo poema, em jeito de dedicatória, só que escrito em prosa...
b) Os sublinhados, claro, são meus.

2 comentários:

Anónimo disse...

"Tudo o que te sobreviveu me agride."

É curioso como ninguém comenta este género de textos, quando os colocas aqui. Foi também dessa forma no "Contigo foi sempre assim: pude ser feliz até mais tarde".


Toda a dor prolongada insulta o seu esquecimento.

LuisElMau disse...

gosto sempre de conhecer um blog pelo meu dia de aniversário.
em 2007 não escreveste nada no dia 24 de agosto, mas em 2006 escreves sobre um assunto que ainda me toca bastante. o tempo depois da morte não sei se passa.

gosto muito do peixoto, para mim o melhor escritor português da minha geração.

bonito blog o teu, parabéns.

um beijo.