PAI: regresso à confissão (talvez nunca, mas está aqui)
"Sábado ao meio dia lá saímos de casa, eu e o meu pai: Smart atestado, tecto aberto ao sol, dois pares de óculos escuros, Jamiroquai - éramos imbatíveis. Sabíamos que perdêramos todos os clássicos decisivos nos últimos vinte anos, mas quando fomos almoçar e começámos a recordar as velhas histórias de desolação era como se expurgássemos em definitivo um passado que já não podia atingir-nos. "This is the day that the Lord had made", cantávamos por dentro. Só havíamos visto juntos um Sporting-Benfica, há uns anos, e eu estava a trabalhar, asbsorto - agora, sim, era para valer.
Devíamos ter sabido ver os sinais. Porque quando íamos a subir as escadas de Alvalade, cachecóis ao pescoço, iPod e olhares cúmplices, já o Miguel Ângelo cantava o seu "Leão de Fogo", remetendo os verbos ao final dos versos para facilitar a rima. Porque depois Ricardo não aquecia, dançava ao ritmo da música que continuava a ecoar. Porque pouco antes do início do jogo quem cantava pelos altifalantes eram Freddy Mercury e Monserrat Caballé, "Barcelona", para gozar com o Benfica e, ao mesmo tempo, recordar-nos a nossa pequenez. Basicamente, festejávamos antes da realização - e nunca essa circunstância se mostrara boa conselheira.
O resultado foi o que devíamos esperar. Falhámos quinze lançamentos laterais, insistimos nos passos longos, o mister enganou-se nas substituições, o inútil do nosso segundo ponta-de-lança continuou inutilmente em campo até já nada haver a fazer por nós - e finalmente o golo gélido, "a intensa solidão das tempestades / os campos alagados / os sítios sem resposta", como diz o Tolentino do jogo que fica para lá das nossas defesas. Ao regressar a casa não ouvíamos já os Jamiroquai: ouvíamos Paulo Bento e Liedson e os "vox pop" da rádio, como se quiséssemos manter aquele momento por um último instante. E, no entanto, tudo se acabara já.
No outro dia uma mulher bonita ouviu-me fazer uma referência a um clássico francês e perguntou-me, embora por outras palavras: "Como é que um tipo que se refere aos clássicos escreve sobre bola?" E eu disse-lhe o que então não tinha ainda sistematizado, mas era já verdade: "Escrevo sobre futebol para o meu pai." A vida distanciou-nos dois mil quilómetros no espaço e dois mil anos no tempo, e a certa altura precisámos ambos de voltar àqueles sábados de desaire dos anos 80, na Terra Chã, em que empunhávamos uma bandeira em frente à TV e nos entregávamos juntos àquilo. Nesse dia, voltei a escrever sobre futebol. Foi uma forma de "reach out". Como se diz "to reach out" em português - "estender o braço"? Então, voltei a escrever sobre futebol para estender o braço ao meu pai. E ele, que naqueles tempos se fingia blasé e me deixava ser eu a empunhar a bandeira, comprou entretanto dois leões de pedra para o quintal. Estendeu o braço também.
E se no fim-de-semana fomos os "losers" do costume, fomo-lo juntos. Perdemos, mas sabemos que é essa a nossa natureza - e, lá no fundo, não esperávamos outra coisa. O campeonato fica bem entregue - e para o ano há mais. Mudámos de presidentes, trocámos de treinadores, tivemos mais de 400 jogadores - mas essa frase permanece como a nossa segunda pele, "para o ano há mais". Hoje vou levar o meu pai ao aeroporto, e estou grato ao futebol e à sua transversalidade por nos terem juntado durante estes dias. Embora para a semana lá esteja eu na ilha - e, então, rimo-nos do quê?"
2 comentários:
Por estas e por outras do género, é que esses gajos mais num mês que eu num ano.
A merda é que não aprecio futebol.
Logo não compartilho desses momentos de cumplicidade paterna, e olha que bem falta me fazem.
"a lingua inglesa fica sempre bem e nunca atraiçoa ninguém."
compreendo-te tão bem, apesar das circunstâncias aparentarem ser diferentes...
também me "resguardo" nesses pequenos elos...com o pai e com a mãe!
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