quarta-feira, janeiro 07, 2009
Tinha um carro vermelho, um Polo fora de século, com matrícula de quando eu ainda usava botas ortopédicas. De há muito tempo, portanto. Era seguramente pequena, porque o fio mais alto de cabelo ficava a quase meio metro do tecto. Se fosse homem, era na certa um daqueles excitadinhos que têm cara de ejaculação precoce. Assim, era só mais um projecto falhado de mulher a tirar-me minutos de vida. Vi-a pela primeira vez (não, não a vi pela primeira vez, cruzei-me com ela pela primeira vez, assim é que é) na curva depois dos semáforos ao pé de minha casa, quando conseguiu a proeza de falhar dois verdes seguidos. Digno de Nobel, de facto. Só não lhe apitei porque estava a tentar camuflar a borbulha que me deu os bons dias. Quando finalmente avançou, fez uns bons duzentos metros sem falhas de maior, e ao sinal seguinte deixou a máquina ir abaixo. Resolveu o problema nuns rápidos dezanove minutos, o suficiente para eu perceber que aquela gola alta preta ainda me ia dar muitas gotas de suor. Eixo Norte-Sul fora, com todos os carros deste mundo e do outro, vi-me obrigada a segui-la: pisca sempre ligado, sempre, mesmo quando ia fazer quase um quilómetro em linha recta; tubo de escape com a poluição de Tokyo e arredores, terço no espelho a balançar para mal da minha colecção de pecados. Na saída para a Praça de Espanha perdeu novamente o controlo da relíquia, e aí consegui ouvir o Marquês de Pombal a gritar de dor. Sem espaço para onde me escapar, permaneci atrás, até que o problema fosse resolvido. Primeira, segunda, marcha, abaixo. Primeira, segu... fumo, muito fumo. A minha buzina ganhou vida. As dos carros de trás, também. Ela mexeu a cabecinha num suplício, olhou para os dois lados num pânico só comparável à fraude das suas aulas de condução, e bateu no automóvel da frente. O condutor só podia ser clone do Dalai Lama, só podia, porque a sua paciência foi tanta que nem gesticulou: percebeu intuitivamente que o dano era pequeno, e seguiu viagem. O ponteiro do meu relógio anunciava quase vinte minutos num trajecto de dois. Não vi as minhas mãos fazerem-lhe manguitos. Ela foi tomada por um espírito bom e arrancou. Mudou de faixa as vezes suficientes para já nem eu saber se a minha saída era Areeiro ou Praça de Espanha. A Antena 3 pôs Buraka, animei-me por segundos, e meti para a direita. Ela achou que a roda traseira do lado esquerdo estava em mau estado, e assim que teve oportunidade, saiu do carro, a permanente a coroar um corpo de duende. Nem tive tempo para pensar: matei-a.
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8 comentários:
Grandes aventuras acontecem e muita paciência é necessária para andar de carro de manhã em Lisboa...
nunca me enganaste ehehe
Quer dizer então, que se não terminou assim, que não fizeste bem nenhum ao mundo! E que, portanto, acabaste de perder o direito à canonização!
Shame on you "K", shame on you...
BEIJOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOS
Mas que trajecto infernal....
Há qualquer coisa de maquiavélico em ti que me faz lembrar alguém...
Ahhh...eu mesma, pois é! :))))
PS: Gostei do post. Mesmo.
foi bem morta! lool
eu nao sei se aguentava tanto tempo de suplicio!
kiss kiss
Malvadinha!Mas aguentaste a buzina..eu não sei se aguentava tanto tempo!
Muito bom!
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