domingo, janeiro 04, 2009

Como nunca escrever uma composição

Nasci a rir. Cresci assim, sem dramas. Aprendi a nadar com quatro anos, aos cinco batia na minha prima Joca, e aos seis (tarde, mas mais vale tarde que nunca) acedi a tirar as rodinhas laterais da bicicleta. Nas contas, cheguei aos cem com três anos, e nas vésperas dos quatro já escrevia todo o abecedário. Fui curiosa o suficiente para não gatinhar, rejeitei a aranha e trepava pelo parquinho acima, sempre que me tentavam cortar as asas. Fiz a minha própria ementa, e dela fazia parte um rotundo "não à sopa e aos verdes", muitas bananas e ainda mais Cérelac. Adorei Barbies, Nenucos, Pinipons, livros Patinhas e "Uma Aventura", o Monopólio, as Tartarugas Ninja, o Calimero, os Póneis, os Ursinhos Carinhosos, a "Missão Impossível" e o "Sassaricando". Joguei à bola no quintal da minha avó, fugi de casa com a minha prima Raquel, levei uma valente tareia, planeei a fuga duas ou três vezes mais, fiz um clube, desmanchei-o no dia seguinte, mascarei-me de palhaço e de dama antiga, joguei aos berlindes e às escondidas, mandei valentes chapões na piscina do meu tio, fiz castelos na areia e destruí-os segundos depois, armei ciladas infalíveis com o meu primo Gonçalo e, crente nas coisas impossíveis, fui estupidamente feliz. Até aos 14 anos. O meu avô morreu, enterrei parte de mim e, meses depois, entreguei a minha vida à minha pior memória. Deixei que comandassem os meus desejos, perdi as minhas ordens, e nunca mais fui a mesma. Durante quatro anos, anulei as minhas vontades, perdi amigos e inimigos, abandonei o riso e as coisas inutilmente saudáveis. Fechei-me para o mundo, e pus nas mãos de quem nunca mereceu o meu futuro imediato. Consenti o improvável, aceitei o medo como forma de vida e permiti que me reduzissem a pó. Não soube dizer "não". Dia após dia, acordava para o meu pequeno inferno. Na idade em que é moda cometer asneiras, todo o meu presente era uma asneira - mas eu não sabia. Na adolescência, essa coisa que eu nunca soube o que era, andei fugida das coisas boas da vida, e até à maioridade esqueci-me que o passado só volta na nossa memória. O grito passou a ser o tom do discurso. Tão banal como respirar. Quando me apercebi que estava numa estrada sem saída, o meu corpo sofreu os demónios alheios. Tentei pôr uma pedra no assunto e esquecer: tinha toda uma juventude a recuperar. Tarde demais. O mal foi feito nesses anos em que devia ter apanhado valentes bebedeiras, em que devia ter chegado tarde a casa, namorado dois rapazes ao mesmo tempo, fumado o primeiro cigarro, experimentado baton vermelho. Não fiz nada disso. Treze anos depois, ainda não recuperei a Ana que se perdeu nesses entretantos. Ainda não sei dizer "não" sem pôr a hipótese do "sim". Ainda não sei agarrar o hoje como se não houvesse amanhã. Ao quarto dia de um novo ano, muitos anos depois, volto a acreditar que vai ser desta.