quarta-feira, janeiro 30, 2008

Turismo Infinito


Tal como Ele recomendou, fui ver a peça que estava na sala Garret do D.Maria. Uma incursão pelo mundo de Pessoa, com ele os seus heterónimos como personagens, num desassossego constante transmitido ao público por alguns dos seus escritos e poemas mais conhecidos - para quem ama Fernando, lá está. De início não percebi porque uma composição daquelas se chamava "Turismo Infinito"; parecia nome de livro de bolso, flyer de agência de viagens... Só quando as palmas deram por terminada a acção, e mais ainda quando já descansava no silêncio da minha casa, percebi o porquê daquele nome. E fazia todo o sentido. Fazia todo o sentido não para a peça, mas para a minha vida. Sempre andei de um lado para o outro sem nunca estar em lugar nenhum, ora em casa ora na casa da avó, com primas tão refilonas quanto eu; depois veio o colégio e a integração foi nula, os muros tiravam-me a liberdade e por isso contei a todos os meninos que o Pai Natal não existia, e assim consegui passar uns dias em casa; na primária tinha um medo colossal de ir ao quadro se o assunto era matemática, porque se errasse era reguada na certa, o que era injusto, porque no resto tinha sempre boas notas e ainda tinha de partilhar a mesa com a Rosarinho, que me roubava canetas de cores; durante os longos anos que antecederam o 10º, comecei a perceber a diferença entre cisne e patinho feio (eu andava entre os dois, até porque era magrinha, e na altura essas coisas não tinham qualquer valor), a habituar-me à ideia de fazer parte do grupo que fica para último quando é para formar equipas em desporto, dei o primeiro beijinho, fui sacaneada por várias amigas, o meu grau de comportamento pouco convencional nas salas de aula foi piorando, ao contrário das notas, que sempre tiveram um crescendo, apanhei um professor maluco a Física e Química que me mandou um giz à cara e me rasgou o lábio (ai não era doido? então e se eu disser que ele regou a mulher com ácido sulfúrico, mudam de opinião?), passei a viver com o controlo do deadline das faltas de comparência, e fiz outras coisas que não interessam nem ao menino Jesus, se alguma vez existiu; décimo-décimo segundo anos: os imortais. em tudo o que não posso escrever mas que um dia conto em praça pública, para poder ajudar muita gente a ter coragem de contar também. Porém, há as coisas banais. A minha paixão por História e Português, a descoberta de Fernando Pessoa, as amizades que se consolidavam, a primeira vez que pensei no que queria fazer do futuro próximo, o medo de ir cada um para seu lado, o medo de falhar, de deitar tudo a perder, muitas faltas, demasiadas faltas, as dúvidas existencias, os porquês a tudo e a nada, as teorias sobre o mundo que ninguém queria ouvir, os exames nacionais e a minha glória, 19 a História, o primeiro Verão em liberdade, os livros à minha volta como abelhas em cima de uma colmeia; a entrada na faculdade não foi pacífica - se tinha finalmente chegado à minha Lisboa, os colegas eram tudo menos "comunicativos", e na primeira semana a pergunta-chave era "com que média é que entraste?"... Aquilo não era para mim, e não foi, por isso fiz tudo sem lá pôr os pés a maior quantidade de vezes possível. Amigos, de lá? Tenho duas. Números de telefone? Não mais que dez. Éramos 80 e tal, se não me engano... Esperava-me o desejado estágio no Público, que amei, mas que, como todas as coisas perfeitas, me fugiu das mãos depressa demais; uma dolorosa travessia no deserto em que me questionei 25 horas por dia; um telefonema e, subitamente, dois anos numa revista. Depois... Ah, já chega! O resto vocês estão fartinhos de saber. Neste carrossel, eu nunca cheguei a perceber em que banquinho me sentei. Neste comboio que é a vida, eu não faço ideia em que carruagem estou sentada. Andei sempre a sair de estação em estação, para experimentar, para ver como é, e nunca fiquei em nenhuma. Os meus eus espalharam-se pelo mundo que conheci e eu fiquei por aqui não estando aqui, pensando sempre mil coisas que não fazem sentido e não interessam a mais ninguém, sonhando com o dia em que me reuno, inteira, e digo que sei o que sou. Por tudo isto, sim, a minha vida é um Turismo Infinito. 

15 comentários:

Ele disse...

A soma das partes será sempre maior... reformulo, sempre muito maior... não. A soma das partes é tão maior, mas tão maior que o todo.

PS - Como sei que já o sabes, apelo apenas para que disso nunca te esqueças.

PS1 - Ando turista há mais alguns dias que tu. E gosto. Como gostei da melhor coisa que já vi em teatro. Porque o melhor é sempre o que mais mexe connosco.

Anónimo disse...

Nunca te esqueças que a tua vida é tudo o que acontece enquanto andas preocupada a preparar o futuro!

Miss K. disse...

Neste caso, e se releres, é mais relembrar o passado...

MysterOn disse...

Nice ;)

Com que então a Rosarinho roubava canetas de côr à menina, hihihi

...ao ler gostei de relembrar também, thanks!

Anónimo disse...

Acho que sabes perfeitamente o que és. Descreveste muito bem o que foste até hoje, e só não descreves o que vais ser de hoje em diante, porque não sabes. Mas isso não é defeito teu... Tanto quanto sei, ninguém sabe. Vive um dia de cada vez, consciente de que amanhã há outro dia. Até tens tido uma vida engraçada, já vi algumas melhores e muitas piores. Be cool! Não desapareci, e espero que não desapareças. Kiss kiss, Miss K.! DG

Drifting Along disse...

Vá para fora cá dentro.

Anónimo disse...

Diz-me, anónimo.
Quando andamos preocupados a preparar o futuro, isso não fará parte de tudo o que acontece, do presente?

kiss me disse...

Tu tens um dom...

PrimaNocte disse...

Uauuuuu....

Anónimo disse...

Olá.
Identifico-me imenso com as tuas palavras, parece que te conheço :)
Faço turismo na vida desde que me lembro e não ser viver doutra forma...
não partilho a mesma vocação académica, mas pelo que li percebo que assim como eu, o que te alimenta são os cheiros, as vontades, a energia na ponta dos dedos, o arrepio à flor da pele, o choro, o riso, as rugas da passagem pelas emoções...
Continua turista, porque ainda há muitas mochilas para pôr às costas e imensos caminhos para percorrer em direcção à pessoa que acabarás por ser...

Anónimo disse...

Adoro um post sobre porque é que a vida é uma obra-prima. É "o" post mas este, neste consegues fazer um resumo "auto-biográfico" fantástico. Aliás, os teus posts (quem lê sabe disso) têm esse dom: apetece ficar a lê-los... relê-los e fico sempre com pena qd chegam ao fim.

Como já foi dito.. tens um dom.

pegueitrinquei disse...

Gostei, gostei... não me identifico com o relato no todo, mas com boa parte...

*

Su disse...

10º/12º - Imortais?

José Silva disse...

Há filmes que nos dizem algo. Este post fez-me lembrar do filme Into to the Wild de Sean Penn.

Pink Lady disse...

De certza que andámos na mesma faculdade...