terça-feira, abril 25, 2006

Dia da Liberdade

Quando eu nasci, a minha mãe já era professora e o meu pai já trabalhava num banco. Entre as primeiras lembranças que tenho, estão as férias na praia, os passeios ao fim-de-semana, as "bás" a tratar de mim, os jantares em casa dos meus tios que se prolongavam até altas horas: os pais iam "ao café", eu e os meus primos ficávamos entretidos, a brincar... Lá em casa havia livros e revistas por todo o lado, já se vê, falava-se das viagens que os avós faziam uma vez por outra (para a avó não ficar com ciúmes, porque o avô ficava horas na rua, era um bon vivant, e se fosse preciso ia a Espanha ao Casino com os amigos...), de como a mãe era rebelde como eu (em criança foi inclusivamente proibida de ir numa excursão de barco, com os amigos, porque o professor não se responsabilizava caso ela "se resolvesse atirar dali abaixo"), e de como eram as coisas antes de eu nascer. "As coisas antes de eu nascer". E foram essas coisas que fui aprendendo e debatendo ao longo destes anos todos, muito por mérito das excelentes professoras de História que tive, e que me ensinarem o passado do País onde vivo.

Ora quando eu nasci já éramos todos livres, portanto eu nunca soube o que era não o ser. Mesmo que faça um esforço, mesmo que tente imaginar, mesmo que veja filmes, não sei, porque nunca me foi vedada a liberdade. Nunca soube o que é ter horas de recolher a casa. Nunca soube o que é ter assuntos de que não se pode falar. Nunca conheci a sensação de ler um livro clandestinamente, com a possibilidade de ser preso por isso. Nunca deixei de ver um filme por este ser considerado "um atentado à moral e aos bons costumes". Nunca concebi a ideia de que três pessoas juntas numa rua podem constituir uma manifestação. Nunca vi um único partido controlar a Assembleia da República. Nunca vi um único homem dominar Portugal. Nunca vi as pessoas com medo de andar na rua com comunistas. Nunca vi ninguém ser preso por ser de esquerda. Nunca acordei para votar em eleições que não passam de uma encenação. Nunca acordei para comemorar resultados de eleições fantasma. Nunca sofri por um amigo que fosse preso por dizer o que pensava. Nunca sofri por um familiar que teve de sair do país por se negar a deixar de ser quem era. Nunca fui interrogada por um PIDE. Nunca tive de ter medo que um PIDE me entrasse pela casa dentro. Nunca fui à prisão levar carinho a alguém inocente. Nunca tive de receber uma carta a dizer que alguém de quem gostava tinha morrido no Ultramar. Nunca vivi com medo que me acusassem de alguma coisa a troco de dinheiro. Nunca vivi com medo em Portugal. Nunca.

Sempre fui livre. Por isso, não sei nada da vida sem liberdade. Só me resta agradecer aos que tiveram a coragem de pegar na espingarda da paz e fazer a revolução dos cravos. Assim nunca tive de saber o que é ter voz, e não poder gritar... Obrigada.



3 comentários:

Anónimo disse...

Segundo o que me contam, antes do 25 de Abril quem trabalhava cegamente e era tacanho vivia mais ou menos como hoje: mal e com pouco dinheiro. Quem falava demais era ostracisado, quiçá preso e torturado. Quem alinhava com o sistema, era conveniente e engolia sapos do tamanho de casas, vivia bem (do ponto vista economicista)
assim como quem pertencesse a boas familias.
Diz-me se esta conjectura social/economica não te parece familiar .

Anónimo disse...

E até te digo mais, muito recentemente a propósito de um script mais politizado, fomos informados que sendo a estc uma escola estatal, não seriam admitidos conteúdos daquele tipo como propostas para filme...

Ring any bell ??

Miss K. disse...

Sim, sim, a campainha tocou... E eu continuo a gostar de ser livre e a abrir a porta à alegria e à liberdade, todos os dias. E continuo a orgulhar-me desses que lutaram para que pudessemos falar ainda mais, gritar, e escrever sem medos coisas como "vai à merda, se não gostas do País que tens, experimenta a Coreia do Norte, pode ser que te sintas melhor."